sexta-feira, 17 de julho de 2009

Quem sabe a morte me procure.... angustia de quem vive: apontamentos sobre filosofias mortuárias ameríndias


Desta feita, estou a debruçar-me sobre uma série de elementos inquietantes a respeito da morte entre os Kaingang e os Guarani do Sul do Brasil. Lendo a tese do Sérgio Baptista da Silva, comecei a me perguntar até que ponto os Guarani não adotaram certas práticas Kaingang para tratar a morte dentro de sua rede social. Já que, ao que consta, pelas pesquisas arqueológicas realizadas, no passado os enterramentos secundários, em urnas funerárias, eram uma constante na sociedade Guarani. Hoje, mexer no corpo de um morto, depois de enterrado, é algo inconcebível para esse grupo.

Sérgio aponta para os elementos cosmológicos que estão envolvidos na construção do corpo, nas sociedades ameríndias. O corpo de um indivíduo é constituido socialmente... ele nunca nasce pronto. A sociedade em que ele vive é que dará 'corpo' ao seu corpo, e este então poderá se tornar pessoa. Os momentos de transição - como o nascimento, a puberdade, o casamento, etc...são elementos essenciais na construção deste corpo humano, e na construção da pessoa. A morte, também é um elemento vital e muito denso dentro dessa concepção de que um corpo é construído socialmente e substancialmente. Dentro dessa lógica, os alimentos ingeridos, os lugares visitados, os fumos, remédios, fluídos e tudo que envolve o corpo são altamente controlados, pois são esses elementos que o comporão e o tornarão material. Além de que esses indivíduos são coletivos, então, cada parte desse corpo se toca com partes de outros corpos sociais, e isso inclui marido / mulher, filhos / pais, irmãos / cunhados, etc....

Quando da morte de um Kaingang, o ritual a ser seguido inclui o isolamento do viúvo, ou da viúva, pois estes compartilharam durante a vida, das substâncias do falecido, e estão impregnados dessas substâncias - que são o sangue, o esperma, os fluídos corpóreos em geral.... - e desta forma, poderão atrair a alma do morto para a casa, trazendo um grande mal à família e à comunidade como um todo....

Além disso, como houve um compartilhamento desses fluídos, o / a viúvo / viúva, poderá começar a apodrecer junto com morto, se não for tratado com os remédios da mata, por um xamã.

Tudo isso envolve os corpos e as almas indígenas...que estão interligadas aos fatores mais profundos da natureza e da cultura - sem distinção de uma e de outra....

Beber o morto, colocar as marcas de sua parentela pintadas no corpo, marcar e isolar o viúvo / a viúva, orientar a alma desse ênte para a aldeia dos mortos... tudo isso envolve a sociedade, objetos, homens e mulheres, e a natureza...

As árvores que são marcadas - com a marca própria da metade social a que pertence o ênte que está sendo enterrado - durante o trajeto do corpo do falecido até o cemitério, se transformam em monumentos funerários, e são prescritas para descanso em casos diferentes de um enterro... são árvores ligadas a morte e a tudo que ela implica... todos os seus perigos estão marcados lá....

Bem, mas porque falei aqui que esse tratamento para conter a alma do falecido, própria dos grupos Jê, pode ter sido incorporada pelo grupos Tupi do Sul?

Fiquei com esta 'pulga atrás da orelha', pois como falei acima, as indicações arqueológicas que temos a respeito dos enterramentos Guarani, apontam para a prática de enterramentos secundários, onde a exumação dos corpos não seria um tabu. Hoje em dia, os atuais grupos Guarani alimentam um medo tremendo de qualquer tipo de alteração nos corpos das pessoas mortas. Exumar um corpo já enterrado é motivo de crise séria nas aldeias... fazendo com que haja inclusive seu abandono.

Nem mesmo a autópsia é permitida... não se corta um corpo depois de morto...

Essas práticas e esses receios pelo que a alma do falecido - diga-se aqui, que se trata do Mboguá, daquela alma animal que nasce com a pessoa Guarani, e que tem de ser domada em seu corpo durante seu crescimento como pessoa - poderá trazer de mal para a familia e para a comunidade, podem ter sido incorporadas ao longo do tempo e dos contatos e reconstruções étnicas, e adquirida dos grupos Jê... que têm esse precedente e atuam com práticas de controle sobre a morte e o corpo do morto, desde tempos antigos....

Claro, que os Guarani podem ter abandonado as práticas do enterramento secundário, também em função das relações e práticas adquiridas do contato com os Jesuitas....que por 150 anos ocuparam seu território e impuseram novas práticas sociais, que se associaram às práticas amerindias já existentes. Mas, o que poderia ter impedido que as práticas e simbologias Jê se misturassem a dos Guarani? Há grafismos nos desenhos corporais e cestos Kaingang que levam a marca Guarani, devidamente incorporadas e ressemantizadas na dualidade Jê.

Práticas filosóficas, crenças, curas e construções corpóreas são elementos transitáveis e mutáveis... estão dentro da lógica do 'mudar pra continuar sendo o mesmo' apontada por Sahlins....

Na dinâmica das culturas tudo é possível... todos os corpos construídos e em construção estão aí para manter o equilibrio e a harmonia do cosmo... e agregar ordem a desordem humana.

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