quarta-feira, 25 de maio de 2011

Ficção Científica e Ciência Fictícia


Compartilho aqui um texto do Eduardo Viveiros de Castro, publicado no Jornal do Brasil, lá pelos idos da década de 1990 (infelizmente na cópia xeros que tenho do artigo não tem a data correta), que trata de uma crítica à tese de Maria da Conceição Beltrão, que afirma uma antiguidade continuada da cultura Tukano na Chapada Diamantina, referenciada pelas pesquisas que a autora realizou sobre arte rupestre no referido local. Viveiros de Castro aponta para a confusão causada pela tal tese em função de afirmar tal coisa, já que isso não procede de forma alguma, sendo que as etnias contemporâneas dos grupos ameríndios não correspondem jamais à grupos etnicos tão recuados no passado, já que a autora se refere a uma datação de 40 mil anos para a existencia desses grupos na Chapada Diamantina, bem como recua a antiguidade do homem na América para 300 mil anos, o que contraria inclusive as datas que se tem para o surgimento do homem na Africa, apontando, dessa forma, para uma autoctonia americana do Homo Sapiens. Não li a tese da referida arqueóloga, mas confesso que aguçou minha curiosidade! Queria saber como e em que ela se baseou para afirmar tais coisas?
O risco de fazer analogias entre populações etnicas atuais e objetos de um passado remoto é sempre grande e perigoso, fazer analogias etnicas dentro de uma data tão recuada é praticamente um suicídio... É impossivel fazer tais afirmações, basta conhecer as diversas readaptações, sincretismos e transformações etnicas por que passaram os grupos ameríndios, assim como qualquer grupo social, para saber que não se pode sequer propor tal índice de continuidade etnica.
Bom, vou transcrever aqui a crítica de Viveiros de Castro, antropólogo do Museu Nacional:

O povo Tukano, que vive hoje no noroeste amazônico, dominava todo o Brasil há 40 mil anos. Ele foi o autor das pinturas encontradas na Chapada Diamantina, no sertão da Bahia, onde se acham vestígios de uma legendária cidade perdida. Além disso - mudando um pouco de assunto e de época - , os primeiros seres humanos já estavam na América há pelo menos 300 mil anos.

Tudo isso pôde ser lido em uma reportagem do Caderno B de 12 de março, sobre as pesquisas da arqueóloga Maria da Conceição Beltrão, do Museu Nacional (UFRJ). Como antropólogo e como professor do mesmo Museu Nacional, acho necessário dizer algo sobre as proposições acima, em atenção aos leitores deste jornal e em respeito à instituição e à comunidade científica de que sou membro.

A tese de que os Tukano teriam vivido na Bahia há 40 mil anos, e ainda por cima 'dominado o país', é pior que inverossímel. A idéia de que se possa determinar qualquer continuidade cultural ou linguística significativa entre uma sociedade atual e uma população que teria vivido há 40 mil anos é absurda , nas presentes condições do conhecimento científico. M. C. Beltrão parece ter chegado a esta idéia mediante uma interpretação imaginosa das pinturas rupestres baianas à luz de mitos Tukano, e talvez também por enxergar semelhanças entre tais pinturas e os petroglifos presentes no territorio Tukano atual.

A atribuição de conteúdos históricos objetivos a mitos é empresa espinhosa, exigindo um conhecimento profundo da cultura e da ecologia das sociedades em estudo; muitas tentativas análogas naufragaram na fantasia delirante. A profa. Beltrão, ao que me consta, nunca fez pesquisas entre os Tukano. Os mitos Tukano a que a professora alude, ademais, remetem a estruturas pan-amazônicas. A identificação étnica de motivos míticos disseminados na vasta é vária Amazônia é outra empresa de rendimento duvidoso, sobretudo se conduzida por amadores. Quanto aos petroglifos da área Tukano (vale do Alto Rio Negro), eles não foram feitos por este povo. Os Tukano são o último estrato de povoamento indígena da região, tendo sido precedidos por grupos de língua aruaque (que alí ainda vivem) e maku (idem). Os petroglifos se devem possivelmente aos aruaques, ou a populações anteriores. A mitologia Tukano fala de uma migração vinda do leste, do baixo curso do Amazonas, mas não me recordo de nenhuma referência na literatura a uma improbabilíssima migração anterior proveniente do sertão baiano. A distribuição geográfica das línguas da família Tukano bem como certas tradições orais sugerem, ao contrário, uma situação mais antiga a oeste do território atual, na região do Napo e Putumayo (Peru e Colômbia). Muitos traços da organização social e ritual Tukano foram assimilados das sociedades aruaques do Rio Negro. Utilizá-los, e à mitologia, para inferir origens e migrações é mais complicado do que parece supor a Profa. Beltrão.

Ao contrário do que diz a matéria, os Tukano não são hoje um bando de 'remanescentes que vivem aculturados no Pico da Neblina'. Sua população é de 26423 pessoas, segundo um censo recente. Deste total, 8691 vivem no Brasil (o restante na Colômbia), o que faz deste povo indígena o sexto maior do país. Quanto a viverem 'no Pico da Neblina', esta é uma informação falsa: o dito pico fica em área tradicional Baré (povo aruaque), hoje habitada a duras penas pelos Yanomamis. Quanto a estarem os Tukano 'aculturados', este é um juízo de valor antropológico nulo.

Sobre os 40 mil anos, e os 300 mil... Discutir estas datas é tarefa para arqueólogos e paleoantropólogos; sou especialista em sociedades pós colombianas. Alguns cientistas têm proposto datações anteriores ao limite tradicional de 12 mil anos para o povoamento das Américas: no momento, há uma controvérsia respeitável em torno de uma data de 50 mil anos para um sítio no sudeste do Piauí. Os 40 mil anos de Beltrão estariam, assim, dentro dos limites do discutível (no bom sentido); há que ver, é claro, como tal datação foi obtida, e repito que remeter qualquer cultura atual a esta época é pura fantasia. Se ainda não se conseguiu identificar etnicamente o povo que deixou o complexo arqueológico de Marajó, e que floresceu entre os anos 400 e 1300 de nossa era, imagine-se uma população que teria vivido há 40 mil anos.

Já os 300 mil anos de presença do homem nas Américas, bem, penso que nenhum arqueólogo competente e honesto (à parte, é claro, a Profa. Beltrão) se disporia a levar esta data a sério. A reportagem diz que tal tese 'causou indignação' na comunidade científica, 'especialmente a americana'. Não sei se indignação é a palavra mais adequada. E indignar os arqueólogos americanos não é garantia automática de verdade científica, como parece pensar a repórter. Surpreende-me ainda que pesquisadores que trabalham neste mesmo campo (nas Universidades Federais de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, na USP e na própria UFRJ) não tenham sido contatados pela reportagem do JB para opinar sobre a revolucionária data de 300 mil anos, que atribui maior antiguidade ao Homo Sapiens na América que na África, berço de nossa espécie - estariamos falando de autoctonia americana, tese ainda mais fantástica? Com a palavra os especialistas, que me parece já deveriam ter se pronunciado há mais tempo, pois esta não é a primeira ocasião emq ue a imprensa diária procura a Profa. Beltrão (ou vice-versa) para divulgar teorias de tal calibre. Aliás, o que pensam a Sociedade de Arqueologia Brasileira e a Associação Brasileira de Antropologia a respeito?
Quanto ao resto da reportagem: a 'cidade perdida', o coronel Fawcett e os índios 'kui-kuros' (ou melhor, Kuikúru, que na verdade são os Kalapalo - mas essa é uma outra história), bem, aqui passamos felizmente da ciência fictícia para a ficção científica. Saudades de Connan Doyle, e de Ridder Haggard (não 'Raidder-Haggard', por favor!)... Desejo todo o sucesso ao livro de arte e ao tratamento romanceado que a Profa. Beltrão e seu assistente pretendem dedicar à geologia da Chapada Diamantina.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Índios, no Plural


Compartilho um texto de Júlio Cezar Mellati, já antiguinho, mas ainda tão significativo.. Esse texto foi publicado primeiramente no Correio do Livro, da Editora da UNB

Há um quarto de século, quando escrevi Índios do Brasil, tinha, entre os vários objetivos desse livro de divulgação, a intenção de mostrar ao público como são diferentes entre si as distintas culturas indígenas. Talvez, por causa de seu plano de apresentação por tópicos (economia, parentesco, política, religião, arte, etc.), aquele propósito não tenha sido exposto de modo tão explícito quanto almejado.

Dada a boa recepção que teve o livro - está na sétima edição brasileira, além de contar com outra, mexicana - senti-me estimulado a trabalhar no tema da diversidade cultural e passei a desenvolver um programa pessoal de atividades que ne possibilitassem uma certa constância no tratamento do assunto.

Na tentativa de ganhar o estímulo de outras pessoas, optei por oferecer um curso de extensão, que não só me poria em contato direto com um público diferente (eu esperava alcançar os professores de história, geografia, educação moral e cívica etc. do primeiro e segundo graus), distinto dos alunos universitários regulares, mas também me obrigaria ao preparo de apostilas, cujo posterior aprimoramento poderia resultar num novo livro. Ofereci esse curso duas vezes, uma na Casa da Cultura da América Latina, da Universidade de Brasília, em 1992, e outra no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás em 1993.

O que eu não esperava era que aqueles que procuraram o curso, em ambas oportunidades, fossem em sua maioria alunos universitários e, mais ainda, da área de Antropologia e afins. Mas consegui meu objetivo de preparar apostilas, num total de 230 páginas, que incluem um texto ainda precário, mapas, tabelas e bibliografia, que estão à espera de novas apresentações do curso que estimulem seu aprimoramento.

Como abordar a diversidade cultural? Em três dezenas de horas, que é o tempo mínimo de um curso de extensão, não é possível tratar, uma a uma, cada cultura indígena nos seus pormenores e peculiaridades. é preciso agrupá-las de alguma forma, mas sem se chegar ao extremo oposto, e justamente o que se quer evitar, de considerar todas num bloco.

Línguas aparentadas, semelhanças de costumes e instituições, adaptação a um mesmo ambiente, relações entre si e com populações integradas em estados de origem européia, serviram-me de critérios para distribuir as sociedades indígenas em um certo número de unidades distintas. Na verdade, utilizei-me dos mesmos critérios de Eduardo Galvão - que foi, diga-se de passagem, o primeiro professor de Antropologia da UnB - quando apresentou suas áreas culturais indígenas do Brasil na IV Reunião Brasileira de Antropologia, em Curitiba, em 1959. Imitei até mesmo sua resolução de se ater a um período histórico limitado, no seu caso a primeira metade do século XX e no meu, a segunda.


Mas há também pelo menos duas diferenças entre o modo de Galvão considerar as áreas e o meu. Uma delas, a julgar pela enumeração que faz dos itens culturais característicos de cada área e pela preocupação em apontar as exceções, é que ele parecia acreditar na possibilidade de se chegar a áreas culturalmente homogêneas. De minha parte, penso que as culturas não podem, como Galvão dá a impressão de fazer, ser dissolvidas numa unidade mais ampla, a área. Além disso, os critérios escolhidos correspondem como que a forças que não atuam todas na mesma direção, deixando o pesquisador que elabora uma divisão em áreas diante de pelo menos duas alternativas: ou agrupa na mesma área as culturas que se assemelham entre si, ou reúne as sociedades que convivem entre si.

Apenas um exemplo para tornar mais claro o que quero dizer: os Bororo de Mato Grosso e os Canela do Maranhão apresentam uma série de semelhanças - falam línguas do mesmo tronco macro-jê, vivem adaptados ao cerrado, têm aldeias circulares, deslocamento do marido para a casa materna da esposa, divisão em metades, etc. - que permitem incluí-los na mesma área cultural. Entretanto, os Bororo e os Canela não se encontram no seu dia a dia, uma vez que estão separados por aproximadamente 1200 km de distância.


No entanto, os Canela vivem próximo dos Guajajara, que encontram com frequência, com os quais já tiveram relações de hostilidade, hoje amistosas. Não obstante, os Guajajara falam um língua do tronco tupi, vivem na floresta, não têm aldeias circulares e nem divisão em metades, e a escolha de residência pelo novo marido depende de um jogo de forças entre seu pai e seu sogro. Se Canelas e Guajajaras não se parecem, em compensação se articulam. Aliás, convém ter em conta que, em muitos casos, sociedades indígenas se articulam, ajustam-se em simbioses, justamente porque são diferentes. São também conhecidos aqueles casos em que algumas sociedades deixam de desenvolver certas técnicas justamente para poder, através de trocas, obter os artefatos ou serviços produzidos com ajuda delas por seus vizinhos, estabelecendo assim uma articulação com eles.

Apesar disso, na divisão em áreas que apresento a seguir, incluí os Canela na mesma área dos Bororo (Tocantins - Xingu), deixando os Guajajara em outra (Pindaré - Xingu). Trata-se de uma escolha arbitrária. Na verdade, preferi pôr os Canela junto com os Bororo porque nesta segunda metade do século XX tanto uns quanto os outros têm feito parte de um conjunto de sociedades indígenas, ditas do Brasil Central, sobre as quais se tem desenvolvido mais um projeto comparativo. Ou seja, os etnólogos se acostumaram a vê-las juntas. Uma vez que uma boa dose de arbítrio fica nas mãos do etnólogo que propõe a divisão, preferi chamar essas áreas de etnográficas, ao invés de culturais.

A outra diferença entre a divisão de Galvão e a que aqui apresento é que a minha não se limita ao Brasil. Levando em conta que várias sociedades indígenas vivem em ambos os lados da fronteira entre o Brasil e outros países, resolvi estender as áreas etnográficas para toda a América do Sul, uma opção que contribui também para romper com a tendência dos pesquisadores brasileiros de limitarem seus interesses de pesquisa ao âmbito do território do país. Se não estendi a divisão para todas as três Américas, foi por receio de perder o estímulo de continuar perante tanto trabalho.

Ao examinar o mapa em anexo, o leitor notará que algumas das áreas sugeridas por mim são exatamente as mesmas propostas por Galvão; outras são desmembramentos delas, e ainda outras são expansões das áreas de Galvão para além da fronteira brasileira. Reconheço que nada há nelas que se pretenda definitivo. Embora haja razões para assim traça-las, há igualmente outras razões para desenhá-las de outra maneira.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Tem índio na Universidade!!!!


As preocupações que tenho quanto a inclusão e permanência desses estudantes indígenas na Universidade, é que a academia sempre se mostrou muito fechada aos saberes que ela desconhece, e estes alunos vêm pra Universidade trazendo na bagagem um conhecimento prático, rico, elaborado pelos anos de aplicação e eficácia em suas comunidades.

O saber indígena não é transmitido nas salas de aula, por um professor que fez curso superior para poder estar ali ensinando. Esses saberes são aprendidos durante toda a vida e de forma integrada, não é um saber fragmentado.
Aliás, a palavra 'ensinar' não existe no vocabulário Guarani, por exemplo, apenas o vocábulo equivalente a 'aprender', porque na concepção ameríndia, o ensinamento é na verdade o aprendizado de todos. E isso não tem um tempo definido para acontecer, ele acontece o tempo todo, durante a vida de cada indivíduo e de forma coletiva durante o convívio com a comunidade e a família.
Não são, portanto, concebidos saberes desconectados do todo, como acontece em nossa sociedade.

Isso faz uma grande diferença na forma de elaborar os pensamentos entre essas pessoas, que aprenderam a aprender em grupo, de forma coletiva e integrada ao mundo em que vivem.
Quando esses estudantes chegam aqui na Universidade, descobrem que terão de aprender a aprender de forma fragmentada, como indivíduos, e terão de mudar a forma de elaborar seus pensamento para apreender os novos conhecimentos que exigem uma nova estrutura psicológica para o aprendizado.
É aí que reside a preocupação: será que as Universidades estarão um dia equipadas para trabalharem corretamente com esses outros modos de elaboração filosófica de mundo?
Atualmente, não se tem preparo para receber estes alunos e respeitar essas suas maneiras de ser. O que acaba por acontecer é que a Universidade acaba impondo ao estudante indígena a sua maneira de agir e pensar, forçando-o a mudar para conseguir viver e conviver dentro dela. Mas, quando será que a Universidade vai estar pronta a mudar também para receber estes outros saberes?
É preocupante ver esses jovens que vem lá de suas famílias, muitas vezes desacostumados à correria das cidades e aos prazos curtos impostos pelos ocidentais para desenvolver trabalhos, leituras, artigos...
Essa é uma dinâmica nova em suas vidas. Eles começam a ter uma carga tensa de obrigações que antes não lhes aparecia dessa maneira, já que o trabalho coletivo, o aprendizado harmonizado com as tarefas do dia a dia, lhes fazia ter tempo para o trabalho e para o lazer, fazendo muitas vezes dos dois uma única coisa.
Aqui não é assim. A Academia trabalha com outra lógica de tempo, e esse tempo deve ser customizado, utilizado ao máximo, para dele extrair o máximo de produtos.
Aí está outra questão importante: trabalhamos com a idéia de produção para o excedente. Nós somos obrigados a produzir mais do que precisamos para poder suprir as demandas da sociedade como um todo, e isso está enraizado nas tarefas acadêmicas, que promovem a produção.
Esses estudantes, jovens, que estão começando a se envolver cada vez mais com nossas práticas de desenvolvimento tecnológico, produção em massa, consumo e descarte, começam a perceber as diferenças - principalmente na questão tempo - que os fazem diferentes de nossa sociedade. Essa sociedade desenvolvimentista, que não tem tempo a perder, porque qualquer momento de relaxamento é visto como tempo perdido para a produção.
Isso não acontece desassociado de um quesito muito importante: a competição.
Essa competição é acirrada, e não funciona como no jogo de frescobol, onde ambos jogadores ganham... Aqui a competição se dá de forma brutal, alguém terá de perder para que o outro ganhe. Para os estudantes já acostumados com esse ritmo louco de nossa sociedade, essa competição é vista como incentivadora, já que os fará buscar serem os melhores entre seus colegas para dentre eles se destacarem e ganharem mais espaços, verbas, bolsas, etc.
Entre os indígenas não funciona assim. Não há vantagens em ganhar ou perder, na verdade todos deveriam ganhar e aprender, então, eles se vêem forçados a mudarem inclusive suas concepções de valores para poderem sobreviver dentro dessas novas lógicas de poder.
Há de se pensar em tudo isso. Há de se pensar em como englobar esses saberes indígenas na Universidade sem que deles se roube o encanto.
Há de se pensar como incluir um aluno indígena sem que dele se exiga o desencanto...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Lei 11.645/2008 - Abordagens para o conhecimento de uma outra história




A inclusão da história e cultura indígenas, assim como de outros grupos sociais e etnias, no currículo escolar brasileiro é um avanço, já que em termos da velha história 'oficial', engessada entre seus heróis e datas festivas relacionadas à feitos militares e políticos, que partiam apenas de uma via, ou seja, aquela que estava 'entronizada' no poder de Estado, hoje já não impera sozinha na construção da cidadania e do nacionalismo.
Hoje, outras vozes vêm compor o coro construtor de um conhecimento mais heterogêneo a respeito das diversas redes sociais, identitárias e etnicas que compuseram a criação de nosso país, bem como do próprio continente americano.
Mas, é preciso salientar que esse evento não surge isolado, nem vem a acontecer por benevolência do Estado ou algo parecido. Ele é fruto da insessante luta dos povos originários por adquirirem espaço e visibilidade dentro desta nação, que se construiu sobre seu território ancestral.
Lembrar que a América, e consequentemente o Brasil surgem a partir da conquista européia sobre outros povos que aqui já viviam a pelo menos 10.000 anos atrás, é pertinente para compreendermos também que estudar e ensinar a história indígena é estudar e ensinar a nossa história, a história do nosso continente.
Houve sempre, nos bancos escolares, a valorização da civilidade, vista esta como uma forma superior da organização social, e se partia do pressuposto que nós, ocidentais, herdeiros das tradições greco-romanas de formação social e do Direito, é que seriamos plenamente civilizados.
Outros povos, que partiam de preceitos sociais diferentes da herança européia, seriam selvagens, bárbaros, incivilizados e portanto, inferiores.
Essa idéia foi plenamente difundida nos bancos escolares, desde sua implantação na sociedade americana que surgia após a conquista, até os dias atuais.
As escolas modernas, surgem no século XX, trazendo ideiais positivistas, de progresso e de civilidade e superioridade da 'raça' branca, a partir da construção científica européia.
Os livros didáticos sempre trouxeram esses ideais muito bem ilustrados em suas páginas, apresentando alguns grupos sociais ou pessoas como fora do padrão de civilidade esperado.
Negros e índios apareciam em determinados períodos da história do Brasil colonial, como meros apêndices - os negros, escravizados, que trabalhavam sob jugo para os Senhores brancos, e os índios como indolentes e preguiçosos, eram indisciplinados demais e fugiam ao trabalho nas lavouras e engenhos de açucar.
Esse senso comum foi se criando e se enraizando nas mentes brasileiras, como se o fato do indígena não se deixar escravizar o tornaria indigno, preguiçoso, maculado (o que não é verdade, pois a própria história confirma que índios foram escravizados sim, muitos foram levados de suas aldeias como escravos e dessa forma participaram da construção das regiões mais desenvolvidas do país hoje - sul e sudeste, vide John Manuel Monteiro em seu livro Negros da Terra).
E quanto a escravização dos negros, que vinham forçados da África, esta aparecia como algo necessário - embora violento e brutal - ao desenvolvimento da Colônia, e portanto o Brasil devia seu crescimento economico aos escravos, porém, não valorizando devidamente o trabalho e a contribuição cultural desses povos que literalmente deram seu sangue nesta terra.
Aos índios sempre sobraram algumas páginas de curiosidades, onde se falavam nos seus 'costumes' de forma generalizada, sem contudo abordar o fato deles terem sempre lutado contra a ocupação européia de suas terras ancestrais. Este é um assunto bastante delicado e não considerado relevante nesse tipo de história, que tenta afirmar o poder dos dominantes e abafar as vozes dos que devem ser dominados.
A negação de um grupo humano, seja ele identitário ou social, sua invisibilização e inferiorização pelo senso comum e pela ciência dita 'moderna' - coloco esta expressão entre aspas, porque relativizo a categoria 'ciência' como sendo apenas o conhecimento hegemônico criado pelas sociedades ditas modernas (vide Bruno Latour em seu livro Jamais fomos Modernos) considerando as ciências das sociedades originárias ou tradicionais tão científicas quanto a das sociedades cristã-ocidentais - é uma forma eficaz para o extermínio físico dessas pessoas.
Atitudes desse tipo foram implementadas por partidos nazistas e fascistas e ainda hoje justificam atitudes brutais de eliminação etnica em muitos setores sociais. Ou seja, a discriminação e o preconceito são ensinados nos bancos escolares. E a escola, sejamos francos, é uma instituição disciplinadora dos corpos e mentes (vide Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir), nos moldes daquilo que Foucault chamou de 'poder', onde somos moldados pelos espaços que frequentamos e vivemos. Somos doutrinados de acordo com a ordem social vigente e reagimos à isso de forma passiva na maioria das vezes, sem nem nos darmos conta do poder que essas forças sociais exercem sobre nossos atos.
A mídia tem um poder avassalador na formação da opinião pública, e infelizmente os canais populares da mídia nem sempre apresentam as realidades de outras vozes que não aquelas que estão no poder (dominantes).
Reforçam, dessa forma, uma idéia equivocada sobre a existência de outras etnias e culturas no país, bem como auxilia no processo de exclusão social, quando aponta negativamente os movimentos sociais.
Há outras formas de informação midiática que apontam para outros lados, porém estas não têm uma repercussão tão intensa, já que a mídia 'alternativa' não atinge a massa popular, onde infelizmente reside a maioria dos escolares.
Fazer este balanço da forma como é ensinado na escola e através de outros veículos que formam nossa opinião a respeito da vida e do mundo em que vivemos, é uma maneira de mostrar como podemos nos deixar manipular pela ordem vigente. Mas, se quisermos olhar em volta, somos bastante capazes de perceber que o mundo em que vivemos é mais colorido e diversificado que nos vem sendo apresentado, e aí está a diferença: podemos e temos poder de mudar as coisas, basta querer ver e querer mudar.
Com a implantação no novas, que colocam em check o velho currículo escolar conteudista já podemos perceber algumas mudanças, embora estas ainda sejam tênues.
Com o ingresso de indígenas e afrodescendentes nas universidades, logo teremos profissionais com outras visões de mundo ingressando no mercado de trabalho e talvez isso já comece a fazer alguma diferença...
A esperança que um outro mundo seja realmente possível é o que me faz continuar trabalhando pra isso.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Rompendo os aramados que separam as fronteiras.....


Pois então, este texto é para me dar uma luz. Preciso de uma luz urgente para escrever sobre o ingresso dos estudantes indígenas na universidade. Mas, lembrando bem, não basta apenas dar possibilidades de ingressar, tem de haver recursos, condições favoráveis à permanência e bom aproveitamento dos cursos que estes meninos e meninas escolheram para mudarem suas vidas. E aí está a questão mais difícil de lidar: a mudança. A mudança de cidade, de estilo de vida, de amigos, de estrutura emocional. Essas pessoas saem de um mundo muito diferente do mundo vivido pela academia. Lá, nas suas aldeias, com suas familias, seus amigos - seus inimigos também, infelizmente...- eles têm segurança, eles conhecem o que os cerca. Aqui na academia não, é tudo novo, tudo diferente.... É exigido um comportamento 'aceitável' nas salas de aula, nos corredores, no bar... seu jeito simples, seu sorriso largo, sua fala calma se torna um motivo para a desconfiança dos colegas, professores e demais viventes que circulam nas academias da vida... Porque? Porque são índios. Essa marca que os torna diferentes e distantes dos demais cidadãos brasileiros. Mas, será que eles são tão diferentes assim? Será que porque falam uma lingua diferente do português quando estão em seus grupos eles não são tão iguais a mim ou a vocês que estão lendo este texto? Eles também falam nosso português, e muitas vezes, falam outros idiomas ameríndios também.... são poliglotas, portanto, e com certeza, falam mais linguas do que eu que escrevo essas linhas. No entanto, há quem os rotule de 'incapazes', pouco inteligentes, negligentes como estudantes... e outras coisas mais, para descaracterizar o seu direito de estar frequentando os bancos academicos no mesmo pé de igualdade que qualquer outro aluno de curso superior. Dificuldades? Ah, sim, eles tem muitas. Principalmente aqueles alunos que se aventuram pelas áreas da saúde, como cursos de medicina e enfermagem. Mas, pergunto: quem no primeiro ano de medicina não tem dificuldades com os termos, com a quantidade de leituras? O fato desses estudantes virem, na sua maioria, de uma escola pública, muitas vezes precária - pois as escolas indígenas não são bem estruturadas para dar suporte ao modelo que temos no ensino superior - não é levado em conta quando professores os classificam como alunos inferiores aos outros na sala de aula. Os estudantes indígenas vem pra Universidade com outras perspectivas, que não são as mesmas dos estudantes não-índios. A realidade deles é muito diferente da que um garoto ou garota que viveu na cidade sua vida inteira, que teve pais que os colocaram em bons colégios, e até fizeram cursinho pré-ENEN / Vestibular para ingressarem na universidade. Essas pessoas, muitas vezes vem de lugares bastante distantes das cidades. Tem, da mesma forma, uma trajetória de dificuldades financieras e psicológicas que o afastam do 'lugar-comum' do estudante universitário, já que essa realidade só está se apresentando para essas pessoas a muito pouco tempo. As noções e necessidades que trazem esses alunos para a universidade são tão diversas das que trazem os tradicionais estudantes que já desde muito ocupam as cadeiras escolares e universitárias no Brasil. Hoje temos essa realidade: indígenas que tem direito a vagas universitárias. Mas, não era assim há alguns poucos anos atrás. Essas pessoas, corajosas, lutadoras, conhecem uma realidade brasileira bem diversa da maioria dos alunos que estão na Universidade, e que sempre estiveram lá. A realidade de professores, acadêmicos, pesquisadores, que estão lá na Universidade ocupando seus gabinetes, suas salas de pesquisa, com seus computadores e equipamentos de alta tecnologia, desconhecem a realildade de uma comunidade indígena, com suas hortas, seus animais, sua mata, sua vida livre, porém com seus problemas, suas angústias, suas recusas... Pois, falamos aqui de pessoas que conhecem uma vida muito mais real do que muitos desses professores, falamos aqui de gente que já sofreu expulsão de suas terras, fome, exclusão, preconceitos de vários tipos. Essa gente brava, vem há mais de 500 anos defendendo seus direitos, sua identidade, sua terra, e só agora lhes é concedido o direito de estudarem as tecnologias dos 'brancos'. E essa tecnologia, essa ciência acadêmica vai ser colocada a disposição das suas comunidades. Nenhum aluno indígena vem pra universidade pensando somente nele, eles vem pensando em suas familias, em sua comunidade, em retornar com conhecimento a mais para ajudar lá na aldeia, ajudar nas demandas que se fazem tão necessárias e urgentes para melhorar a vida daquelas pessoas que os estão esperando para realizar coisas boas para eles. Os povos indígenas sempre foram denegridos pela história brasileira, que os apresentou como secundários e pouco ativos na formação de toda essa nação. Hoje eles vem reinvindicar seu lugar nessa história, e ocupar os lugares que lhes cabe na sociedade brasileira. Mas, o preconceito permanece muito enraizado, e os olhares sobre essas pessoas ainda os marginaliza, ainda os coloca numa patamar inferiorizado diante daquilo que é visto como o 'ser brasileiro, ser cidadão'. As ciências e conhecimentos de seus ancestrais, que ainda são utilizados e resolvem seus problemas nas suas terras - muitas vezes com mais eficácia do que muitos projetos cinetíficos implementados pelo Governo e que não dão bons resultados - não são reconhecidos pela academia como um tipo de 'fazer ciência', mas é visto sim como fetiches e crendices, não sendo levados à sério pelos notórios nomes da ciência acadêmica. Estes e tantos outros elementos nos levam a perceber que os estudantes indígenas que vem pra universidade tem tanto a nos ensinar quanto a aprender conosco. A questão está em o quanto estamos abertos - como eles estão - para esse novo aprendizado. Isto sim será um desafio para os cristãos - ocidentais modernos.