terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A MEMÓRIA NA PONTA DA LÍNGUA

Texto de Fabiano Maisonnave, publicado na Folha de São Paulo (07/06/1998).
História da História Oral:
O uso de entrevistas como fonte histórica está longe de ser novidade. Heródoto, considerado o pai da história, já utilizava como fonte para seus escritos, na Grécia do 5° a. C. Mais recentemente, no século 19, Jules Michelet precisou de depoimentos para compor a sua 'História da Revolução Francesa'.
A história oral como é conhecida hoje começou a se desenvolver a partir da invenção do gravador, que facilitou a realização de entrevistas e possibilitou a criação de arquivos de fontes orais.
O primeiro centro de história oral foi fundado há 50 anos na Universidade Columbia, em Nova Yark. Hoje, o centro de Columbia é o maior do mundo, com 15 mil horas de entrevistas. Segundo Ronald Grele, diretor do centro, quase 2000 livros já foram escritos a partir da coleção de entrevistas.
No Brasil, apesar do crescimento, a história oral ainda tem pouca visibilidade, sobretudo por se tratar de um campo recente. Por aqui, pode-se dizer que a história oral teve três 'começos': dois na década de 70 e depois nos anos 90.
A primeira experiência dentro do país começou no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil), ligado à Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Em 1975, o CPDOC criou, em pleno regime militar, o seu programa de história oral, nos moldes da Universidade Columbia.
Atualmente, o CPDOC tem um acervo de cerca de 3000 horas gravadas, constituído sobretudo de depoimentos de personalidades da elite política e militar brasileira. Na mesma época, uma outra história oral brasileira surgia, mas do lado de fora: trata-se do trabalho de Pedro Cavalcanti e Jovelino Ramos, que, no exterior, entrevistaram exilados do regime militar.
A explosão da história oral só veio a ocorrer nos anos 90, quando pesquisadores que trabalhavam com fontes orais passaram a organizar encontros e trocar experiências, culminando na criação, em 94, da Associação Brasileira de História Oral (ABHO).
A partir desse momento, predominaram trabalhos que visassem grupos sociais cuja história dificilmente seria escrita a não ser por meio de fontes orais: analfabetos, favelados, garimpeiros, índios.
'A grande força da história oral é que ela pode recuperar segmentos da sociedade que de outra forma se perderiam', diz Antônio Torres Montenegro, professor de história da Universidade Federal de Pernambuco e presidente da ABHO. Para ele, a história oral está mudando a noção de que a história começa com a escrita.
Apesar de não haver nas universidades brasileiras linhas de pesquisa em história oral, vários centros têm sido criados - casos do NEHO (Núcleo de Estudos em História Oral), da USP, e do Centro de Memória, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A constituição de acervos de entrevistas também tem crescido. Em São Paulo, há arquivos desse tipo no Museu da Imagem e do Som, no Arquivo Histórico Judaico-Brasileiro e até na internet - no site Museu da Pessoa (www2.uol.com.br/mpessoa/).

Conceito gera confusão:
Pelo fato de ser ainda um campo recente, de ter se espalhado rapidamente e de agregar pessoas de diversas áreas - historiadores, sociólogos, educadores, linguistas - uma definição mais clara do que é historia oral ainda está longe de um consenso.
Mesmo Alessandro Portelli, maior referência sobre o assunto, tem dificuldades em dizer qual a melhor definição de história oral.
Para Meihy, autor de um manual de história oral, uma pesquisa nesses moldes passa pela existência de um projeto que comporte uma série de procedimentos metodológicos, envolvendo a edição da entrevista e uma conferência do texto final com o depoente.
É por isso, diz Meihy, que o livro 'O Presidente segundo o Sociólogo' que traz um entrevista com Fernando Henrique Cardoso, não pode ser considerado um livro de história oral. 'Ele se propõe apenas a ser um conjunto temático de reflexões que se organizam para mostrar um determinado posicionamento', diz Meihy.
Para o antropólogo Celso Castro, pesquisador do CPDOC e um dos entrevistadores do livro 'Ernesto Geisel', a história oral é apenas uma metodologia para a criação de uma nova fonte, que deve ser cruzada com outras fontes mais tradicionais.
Outra diferença, para o pesquisador, é que o entrevistado participa da elaboração do texto final, como aconteceu com Geisel, que revisou o depoimento duas vezes.
O que há de consenso na confusão teórica é que as fontes orais abriram possibilidades de estudar temas e grupos a partir de perspectivas diferentes. As entrevistas permitem, assim, que conhecimento histórico avance em espaços até então pouco ocupados.
Um dos casos mais interessantes é o de Mercedes Vilanova, da Universidade de Barcelona e presidente da Associação Internacional de História Oral. Ela pesquisou a participação eleitoral na Catalunha em 1934.
Até o seu estudo a historiografia afirmava que a derrota da coalizão de esquerda naquela região devia-se à abstenção dos anarquistas. A vitória ficou para a direita, cujo governo, que durou até 36, gerou um dos períodos mais difíceis da história espanhola, conhecido como 'biênio negro'.
Baseando-se em depoimentos, Vilanova revelou que houve outros motivos: a baixa participação dos analfabetos nas eleições e a coação de donos de fábrica para que os funcionários votassem.
'Quando, depois de anos trabalhando nos arquivos, decidi realizar o 'trabalho de campo', o mundo bibliográfico no qual até então estava me baseando virou papel morto', escreveu a oralista no livro 'Las Mayorías Invisibles', de 1996.