terça-feira, 24 de maio de 2011

Índios, no Plural


Compartilho um texto de Júlio Cezar Mellati, já antiguinho, mas ainda tão significativo.. Esse texto foi publicado primeiramente no Correio do Livro, da Editora da UNB

Há um quarto de século, quando escrevi Índios do Brasil, tinha, entre os vários objetivos desse livro de divulgação, a intenção de mostrar ao público como são diferentes entre si as distintas culturas indígenas. Talvez, por causa de seu plano de apresentação por tópicos (economia, parentesco, política, religião, arte, etc.), aquele propósito não tenha sido exposto de modo tão explícito quanto almejado.

Dada a boa recepção que teve o livro - está na sétima edição brasileira, além de contar com outra, mexicana - senti-me estimulado a trabalhar no tema da diversidade cultural e passei a desenvolver um programa pessoal de atividades que ne possibilitassem uma certa constância no tratamento do assunto.

Na tentativa de ganhar o estímulo de outras pessoas, optei por oferecer um curso de extensão, que não só me poria em contato direto com um público diferente (eu esperava alcançar os professores de história, geografia, educação moral e cívica etc. do primeiro e segundo graus), distinto dos alunos universitários regulares, mas também me obrigaria ao preparo de apostilas, cujo posterior aprimoramento poderia resultar num novo livro. Ofereci esse curso duas vezes, uma na Casa da Cultura da América Latina, da Universidade de Brasília, em 1992, e outra no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás em 1993.

O que eu não esperava era que aqueles que procuraram o curso, em ambas oportunidades, fossem em sua maioria alunos universitários e, mais ainda, da área de Antropologia e afins. Mas consegui meu objetivo de preparar apostilas, num total de 230 páginas, que incluem um texto ainda precário, mapas, tabelas e bibliografia, que estão à espera de novas apresentações do curso que estimulem seu aprimoramento.

Como abordar a diversidade cultural? Em três dezenas de horas, que é o tempo mínimo de um curso de extensão, não é possível tratar, uma a uma, cada cultura indígena nos seus pormenores e peculiaridades. é preciso agrupá-las de alguma forma, mas sem se chegar ao extremo oposto, e justamente o que se quer evitar, de considerar todas num bloco.

Línguas aparentadas, semelhanças de costumes e instituições, adaptação a um mesmo ambiente, relações entre si e com populações integradas em estados de origem européia, serviram-me de critérios para distribuir as sociedades indígenas em um certo número de unidades distintas. Na verdade, utilizei-me dos mesmos critérios de Eduardo Galvão - que foi, diga-se de passagem, o primeiro professor de Antropologia da UnB - quando apresentou suas áreas culturais indígenas do Brasil na IV Reunião Brasileira de Antropologia, em Curitiba, em 1959. Imitei até mesmo sua resolução de se ater a um período histórico limitado, no seu caso a primeira metade do século XX e no meu, a segunda.


Mas há também pelo menos duas diferenças entre o modo de Galvão considerar as áreas e o meu. Uma delas, a julgar pela enumeração que faz dos itens culturais característicos de cada área e pela preocupação em apontar as exceções, é que ele parecia acreditar na possibilidade de se chegar a áreas culturalmente homogêneas. De minha parte, penso que as culturas não podem, como Galvão dá a impressão de fazer, ser dissolvidas numa unidade mais ampla, a área. Além disso, os critérios escolhidos correspondem como que a forças que não atuam todas na mesma direção, deixando o pesquisador que elabora uma divisão em áreas diante de pelo menos duas alternativas: ou agrupa na mesma área as culturas que se assemelham entre si, ou reúne as sociedades que convivem entre si.

Apenas um exemplo para tornar mais claro o que quero dizer: os Bororo de Mato Grosso e os Canela do Maranhão apresentam uma série de semelhanças - falam línguas do mesmo tronco macro-jê, vivem adaptados ao cerrado, têm aldeias circulares, deslocamento do marido para a casa materna da esposa, divisão em metades, etc. - que permitem incluí-los na mesma área cultural. Entretanto, os Bororo e os Canela não se encontram no seu dia a dia, uma vez que estão separados por aproximadamente 1200 km de distância.


No entanto, os Canela vivem próximo dos Guajajara, que encontram com frequência, com os quais já tiveram relações de hostilidade, hoje amistosas. Não obstante, os Guajajara falam um língua do tronco tupi, vivem na floresta, não têm aldeias circulares e nem divisão em metades, e a escolha de residência pelo novo marido depende de um jogo de forças entre seu pai e seu sogro. Se Canelas e Guajajaras não se parecem, em compensação se articulam. Aliás, convém ter em conta que, em muitos casos, sociedades indígenas se articulam, ajustam-se em simbioses, justamente porque são diferentes. São também conhecidos aqueles casos em que algumas sociedades deixam de desenvolver certas técnicas justamente para poder, através de trocas, obter os artefatos ou serviços produzidos com ajuda delas por seus vizinhos, estabelecendo assim uma articulação com eles.

Apesar disso, na divisão em áreas que apresento a seguir, incluí os Canela na mesma área dos Bororo (Tocantins - Xingu), deixando os Guajajara em outra (Pindaré - Xingu). Trata-se de uma escolha arbitrária. Na verdade, preferi pôr os Canela junto com os Bororo porque nesta segunda metade do século XX tanto uns quanto os outros têm feito parte de um conjunto de sociedades indígenas, ditas do Brasil Central, sobre as quais se tem desenvolvido mais um projeto comparativo. Ou seja, os etnólogos se acostumaram a vê-las juntas. Uma vez que uma boa dose de arbítrio fica nas mãos do etnólogo que propõe a divisão, preferi chamar essas áreas de etnográficas, ao invés de culturais.

A outra diferença entre a divisão de Galvão e a que aqui apresento é que a minha não se limita ao Brasil. Levando em conta que várias sociedades indígenas vivem em ambos os lados da fronteira entre o Brasil e outros países, resolvi estender as áreas etnográficas para toda a América do Sul, uma opção que contribui também para romper com a tendência dos pesquisadores brasileiros de limitarem seus interesses de pesquisa ao âmbito do território do país. Se não estendi a divisão para todas as três Américas, foi por receio de perder o estímulo de continuar perante tanto trabalho.

Ao examinar o mapa em anexo, o leitor notará que algumas das áreas sugeridas por mim são exatamente as mesmas propostas por Galvão; outras são desmembramentos delas, e ainda outras são expansões das áreas de Galvão para além da fronteira brasileira. Reconheço que nada há nelas que se pretenda definitivo. Embora haja razões para assim traça-las, há igualmente outras razões para desenhá-las de outra maneira.

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