segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A PAISAGEM COMO CULTURA MATERIAL: ANÁLISE DE MAPAS E DESENHOS GUARANI COMO FONTE PARA ENTENDER A TERRITORIALIDADE


Um dos documentos utilizados em minha pesquisa são os mapas e desenhos das aldeias Guarani, produzidos por professores e alunos nas escolas indígenas desse povo. Aqui apresento uma dessas imagens e/ou desenhos que estão publicadas num livro utilizado em algumas das escolas indígenas no sul do Brasil. Alguns desses desenhos são feitos por alunos, e figuram estampados nas paredes destas escolas.
Muitas coisas podem ser percebidas através destas representações do espaço, feito pelos Guarani. Desde uma idéia de lugar, até a orientação dada à estes mapas. Pode-se perceber que eles são desenhados em sua maioria de forma tridimensional e numa visão plana, a partir do chão.
Uma imagem pode dizer tantas coisas a respeito de quem a produziu, e assim, não é diferente com relação aos mapas produzidos pelos Guarani. Nesses desenhos é possível notar a percepção de espaço produzida por eles, com uma perspectiva muito própria da comunidade.
Como estes desenhos são produzidos para uso didático nas escolas indígenas, eles não foram feitos para mim, com o objetivo de uso na minha pesquisa, mas eu estou me apropriando dessas imagens, buscando nelas informações produzidas através do discurso indígena, construído internamente, já que este livro, onde estão impressas as imagens, assim como os desenhos expostos nas salas de aula, não são veiculados fora das aldeias, pelo menos não é esse seu objetivo.
Há elementos presentes nos mapas que são comuns a todas as comunidades, bem como aqueles que são bastante particulares. E essas semelhanças e diferenças são parte importante para a compreensão do ‘lugar’ elencado pelos Guarani das diferentes aldeias, já que apontam importantes contextos de sua territorialidade e daquilo que prezam como patrimônio comum ao grupo.
Esses documentos a principio não eram tão importantes pra mim, foi ao longo do desenvolvimento da pesquisa que eles foram se mostrando mais e mais interessantes, e algumas questões vindas de minhas indagações começaram a encontrar possíveis respostas através desses mapas e desenhos. Daí em diante, começo a dedicar maior atenção a essas representações.

Assim, como aponta Ginzburg, a abertura que o pesquisador dá aos documentos pode dar vazão à vozes não ouvidas, caso se tenha um objeto muito fechado. Bem como pensar no lugar que esses documentos irão ocupar dentro da problemática da pesquisa, já que é a partir dela que esses documentos ganham corpo e estrutura no decorrer da construção do meu discurso. No caso desta pesquisa junto aos Guarani, meu principal documento seria a etnografia, já que, se pretendo compreender as categorias patrimoniais dos Guarani, vou precisar conviver e observar a forma como eles organizam e classificam a memória e a cultura, principalmente os objetos que demonstram cultura. No entanto, há outros documentos, que já vem sendo produzidos com este objetivo, pelos próprios representantes desse povo, e que estão entrando cada vez mais no bojo das minhas análises por trazer outras análises internas, feitas pelos próprios Guarani sobre a sua Memória e cultura material.
Os Guarani têm apresentado um interesse muito grande em contar sua história aos ‘outros’, seja oralmente, seja através de livros, em geral editados para as escolas indígenas e outras instituições relacionadas a elas. Um dos recursos utilizados são esses desenhos que constam nos livros didáticos da escola indígena, e que apresentam uma série de objetos relacionados ao escopo cultural do grupo, a organização social e aos ritos religiosos. Esses objetos são também utilitários e muitas vezes ficando difícil distinguir as suas funções apenas pela forma, pois o que vale na hora de entender a função desse objeto é a história que ele traz internalizada. Depende do ‘pra quê’ foi feito, de quem o utiliza, com que finalidade, que pode ser imediata ou reorientada posteriormente.
A representação gráfica é uma forma de externalização dos significados e dos signos dos objetos reconhecidos pelo homem como parte de seu cotidiano.
E essas formas de expressão que se delineiam através de desenhos de coisas e lugares, podem muito bem ser entendidas como apresentações mitológicas as quais as crianças da escola estão familiarizadas, pois estes são cotidianamente contados pelos ‘velhos’ como histórias, que se apresentam aos olhos e ouvidos das gerações mais novas como uma ’história Guarani’, seu jeito de entender e explicar as coisas que povoam seu mundo vivido.
No caso desses mapas aqui análisados, a idéia parece ser um tanto diferente. Não estão aqui, na maioria deles, representadas as formas ideais da Terra de Guarani, mas a forma como este território se apresenta atualmente, com suas delimitações geográficas e os objetos que estão dentro desse lugar (casas, açudes, plantações, escola, etc....). No entanto, não deixam de ser representações do real, uma maneira que os Guarani vêem seu território, ou pelo menos o território da aldeia e seus arredores.
Um outro elemento que me chama a atenção nesses desenhos, são os recortes feitos na paisagem. Eles estão se referindo a aldeia, que é o foco central, mas há em muitos deles os arredores e aí temos que perceber as cores utilizadas, a maneira de representação (grande / pequeno), como índices da forma que compreendem ou querem mesmo representar esses elementos na sua própria construção histórica.
Deve-se aqui atentar pra um conceito de lugar e de espaço, a fim de entendermos como se constrói essa idéia junto às comunidades Guarani e desde então se pensar como isso é representado entre os indivíduos dessas comunidades.
Seguindo o raciocínio de Yi-Fu Tuan (1980: 83)
A familiaridade com o espaço é que o caracteriza como lugar e na sua elaboração conceitual, a experiência e o contato topofílico proporcionam novas abstrações espaciais que poderão ser transformadas e comunicadas através de simbologias, palavras e imagens, montando capacidades geográficas configuradas em conhecimento espacial.
Sendo que o autor entende como topofilia um estudo da percepção, atitudes e valores que as pessoas têm de seu meio ambiente. Os Guarani fazem uso desse meio em que vivem e classificam-no de acordo com sua percepção de mundo. E isso é que é interessante nesses mapas... a forma como os Guarani estão construindo essa percepção atualmente, no contexto da sua territorialidade.
Outra maneira de perceber o lugar como um elemento presente na construção de uma memória local é apontada por Mariana Cabral (2005: 64), como:
... uma das formas de olhar para o registro arqueológico não como algo dado, mas como uma interpretação construída no presente. O que está por trás desta perspectiva, então, é a idéia de considerar o espaço arqueológico como uma paisagem formada por uma rede de conexões, onde espaços naturais e espaços culturais se interpenetram.
E aqui, a autora chama a atenção mais para o como o pesquisador está trabalhando com seus documentos e não a forma como o ‘outro’ o entende.
Dessa forma, é de se pensar como eu estou construindo meu discurso sobre a territorialidade Guarani, baseando-me em seus próprios discursos e representações do real. Eu também estou fazendo os meus recortes desse ‘real’. No entanto, se eu conseguir olhar estes meus documentos não como ‘coisas dadas’ e prontas, mas como interpretações construídas no presente e com objetivos políticos e culturais, no sentido de afirmativos, posso compreender esses discursos como característicos de um momento vivido por esse povo e assim perceber as redes de conexões que estão imbricadas nessas representações do espaço Guarani.
E, ainda, segundo Edward Soja (1993: 101-102):
O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes ao estar vivo, exatamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo. Seguindo uma linha semelhante, Lefebvre estabelece uma distinção entre a Natureza como um contexto ingenuamente dado e aquilo que se pode denominar de ‘segunda natureza’, a espacialidade transformada e socialmente concretizada que emerge da aplicação do trabalho humano deliberado. É essa segunda natureza que se transforma no sujeito e no objeto geográficos da análise histórica materialista, de uma interpretação materialista da espacialidade.

Essa idéia de construção da natureza e do espaço é bastante importante nas avaliações desses lugares de memória indígena, já que aqui se sabe que a dicotomia natureza / cultura é muito tênue, quase inexistente. Então, como verificamos, há também os elementos agregados que estão misturados nessa rede de conexões, onde a imagem produzida, tem muito da estrutura política dos órgãos públicos, o que não invalida de forma alguma esta construção, já que a memória social é construída no presente e tem um valor externo, ou melhor, voltada para o externo, bem como aquele valor interno, de reprodução familiar.
Esses mapas divergem daqueles desenhos sobre território que os Guarani fazem utilizando as lendas e os mitos como fundo. Aqui eles representam esse território, de forma direta, conforme a geografia ocidental também faz.... Mas há o elemento identidade aí.. e como naqueles mapas antigos, de viajantes, trazem coisas imaginadas e sonhadas na forma de representação do real.
Este tipo de documento tem de ser pensado através das coisas e lugares que representa como imagens, nos desenhos, mas também como uma coisa feita pelos Guarani. O próprio mapa é um objeto produzido que representa cultura... É cultura material também. E aí essa relação entre algo construído pra representar algo, é também representativo de algo maior, um outro tipo de suporte que vai levar as mensagens entre as pessoas, e que sai da lógica da oralidade, mas não deixa de ser comunicativo. A questão é como essa comunicação esta se dando? Isto é outro elemento bastante interessante no trânsito desses mapas e desenhos sobre o papel.

BIBLIOGRAFIA:
CABRAL, Mariana. Sobre pessoas, coisas e lugares: uma prática interpretativa na arqueologia de caçadores – coletores do sul do Brasil. Porto Alegre: PPGH / PUCRS, dissertação de mestrado, 2005.
DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.
SOJA. E. Geografias Pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
TUAN, Yi-fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.

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